Se, hoje, uma pessoa – relativamente madura (já não sei mais o que é maturidade numa sociedade imatura) – perguntasse que curso de licenciatura deveria seguir, eu creio que responderia com toda a minha convicção: Letras.
Como diziam as minhas professoras e mesmo colegas de trabalho: em qualquer concurso, o professor formado em Letras já sai na frente, ele não precisa estudar para a prova de português e, além disso, ele tem considerável facilidade para interpretar textos sobre legislação, conhecimentos gerais etc.
Na minha graduação – e sei que isso provavelmente não seja mais uma realidade nos cursos de Letras -, eu fiz três disciplinas de Língua Latina, que é tida como a língua-mãe do português. Lembro-me que, na terceira disciplina, quando estudamos as orações subordinadas, fez-se a luz, elas são tão simples, tão simples, que eu ria. Quando, como professora de Literatura, “socorria” alunos de ensino médio, eles se diziam encantados: “mas é só isso?”
The Course of Empire - Destruction', por Thomas Cole (1836)
Na disciplina de Filologia Românica, caiu por terra todo e qualquer preconceito linguístico: celtas, iberos, turdetanos, lusos, entre outros, habitavam a antiga Hispânia (atual Península Ibérica, em que se localizam Portugal e Espanha). Eles recebiam a visita de diferentes povos, como gregos e fenícios. Depois, a Península foi ocupada pelos romanos (soldados, aventureiros e prostitutas, portanto, o latim vulgar dominou a região), que nos legaram o Cristianismo. Com a queda do Império Romano, surgiram os povos bárbaros ou vândalos, voltados para a guerra, como suevos, godos, visigodos, ostrogodos, em sua maioria, de ascendência germânica. Foi uma fase breve, porque, pelo Mar Mediterrâneo, chegariam os árabes (muçulmanos ou sarracenos), que ficariam na Península Ibérica por cerca de 700 anos. Do Sul, eles dirigiram-se ao Norte e só não conquistaram, de fato, a Catalunha e o País Basco (entenda, por favor, os motivos que fazem a Catalunha e o País Basco não se identificarem com a Espanha!). No processo de Reconquista, surgiu o Condado Portucalense, origem do atual Portugal, mas que, realmente, expulsou os árabes foram os reis de Castela e Aragão, Isabel, la Católica, e Fernando – sabe o que é legal? No mesmo ano em que garantiam a saída dos sarracenos, Colombo, financiado pelos reis da Espanha (Fernando e Isabel), aportava no continente que chamamos América. Era 1492. É sempre importante lembrar que vieram para a América: soldados, aventureiros, prostitutas e, claro, os prisioneiros / degredados ou exilados, como queira.
Já me disseram e eu concordo: Letras tem uma origem aristocrática: a exemplo de advogados e filósofos, os “letreiros” voltam ao panteão grego, à mitologia, às tragédias e às epopeias, ao pensamento que vicejou em Atenas no chamado “Século de Ouro”, por volta de 450 a.C., quando viveram, entre outros, Aristóteles, que fornece os principais elementos para análise e compreensão do pensamento literário. A tripartição clássica dos gêneros literários pertence ao filósofo de Estagira, que considera a epopeia (como “Ilíada” e “Odisseia”), que hoje conhecemos como gênero narrativo; as tragédias (especialmente, de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes), origem do teatro e do gênero dramático; e o gênero lírico, a que atribui pouca relevância, porque era a manifestação de um eu, único, subjetivo.
Aristóteles ainda nos legou dois conceitos fulcrais no trato literário (e não pensem que eu vou tematizar a literariedade dos formalistas russos do século XX): a mimese e a catarse. Para Platão, o artífice copiava as coisas como via e, portanto, Platão desprezada os artistas, que (re) criavam a natureza por meio da palavra, da pintura etc. Aristóteles introduz a ideia da mimese, como recriação da realidade. Não é a realidade, mas uma forma de vê-la (os teóricos da História Nova, nos anos 1970, admitiriam que até mesmo a História é uma recriação da realidade feita a partir de documentos, escavações, depoimentos, indícios, mas que o historiador acaba “fechando brechas” para que o leitor entenda os acontecimentos.
No que tange à catarse, eu gosto muito de referir o melodrama, que surgiu na França, logo depois da Revolução de 1789. Ele tem uma estrutura simples: tudo está bem, algo acontece que desestabiliza a situação, mas o mal é vencido e a situação do bem se restabelece (estrutura típica das telenovelas). Havia um povo, o francês, que vivera uma sangrenta, conturbada revolução, com milhares de mortos, era preciso “dizer-lhes”, “demonstrar-lhes” que tudo ficaria bem, que o bem venceria e todos seriam felizes. Os espectadores saíam aliviados das encenações do melodrama que, em geral, aconteciam em praça pública. Quem estava por aqui naquele 01 de maio de 1994 lembrará da morte de Ayrton Senna, todos choramos a morte dele, mas todos fizemos uma “catarse” coletiva: choramos os nossos dramas, a inflação alta que vinha corroendo os nossos salários, a decepção que havia sido o governo Collor etc.
Duas considerações finais: quando eu cursei Letras, havia uma disciplina chamada Teorias da Comunicação, que se poderia dizer muito próxima da oratória. É-me muito fácil observar um advogado ou um político, ouvir as suas palavras, os seus trejeitos e identificar estratégias de convencimento ao público. Piso, aqui, em ovos, mas tomo o ex-presidente Bolsonaro: fala simplória e truculenta, roupas comuns, refeições à base de pão e leite condensado faziam o quê? Aproximavam-no do povo, do homem comum. Houve quem acreditasse.
Por último, nas disciplinas de Crítica Literária somos ensinados a analisar textos escritos e, para tal, lançamos mão de inúmeras metodologias. De minha parte, gosto muito de considerar o tempo histórico de escrita da obra, ou seja, as relações entre Literatura e História. Mas há outra maneira de analisar-se uma obra, a Psicologia da Literatura e, para isso, as leituras dos textos de Freud são uma necessidade absoluta.
Durante a pandemia, eu fui uma das pessoas que mais bradava contra a negação da doença e da morte da nossa gente. Não vou teorizar sobre o tema, afinal, não sou psicóloga, mas qualquer site de busca indicará as fases do luto e ele começa exatamente com a negação (era, sob certo aspecto, irônico, talvez, trágico, ouvir as pessoas dizerem que não viam mais televisão, afinal, só se noticiavam mortes – é o isolamento das causas que nos fazem sofrer); passa pela raiva – e quem foi objeto de raiva? Aqueles que não seguiam os mesmos parâmetros, aqueles que não negavam a doença, que lutavam pelas vacinas. Depois, vem a barganha: “É, por via das dúvidas, vou me vacinar!” Tem-se ainda a depressão e, por fim, a aceitação.
Não é ser mais do que ninguém, talvez o profissional da área de Letras saiba um pouco mais do que os outros e isso lhe facilite (e, por vezes, dificulte) o entendimento com as demais pessoas, que irritam com a sua (do “letreiro”) leitura do mundo. Agregue-se que nós, professores “natos” de Literatura, já lemos tanto sobre sentimentos humanos em outros tempos, em outras sociedades que apenas identificamos agora em nossa sociedade. É importante frisar: nem todos os professores formados em Letras têm a mesma habilidade e a mesma compreensão do mundo, existe algo que é muito relevante: o esforço pessoal que, ao final da graduação, fará uma grande diferença.
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