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O jovem desatento foi arremessado para fora do carro, pudera, André não usava o cinto de segurança. Bateu a cabeça nas pedras e sangrou até a morte. Carmem ficou presa entre as ferragens, mas era os estilhaços de vidro cravados no coração que estavam roubando sua vida. A pobre moça perdia os sentidos. Não conseguia dizer absolutamente nada e para o seu desespero, não conseguia se mover, somente as lágrimas moviam-se pelo corpo ensanguentado. Carmem fechou os olhos, pensava na família, nos amigos, nas pessoas que mais amava. Em prantos, recordava dos carinhos de sua mãe, da benção que pediu para a avó antes de sair.

- Não precisava ser assim, tão dramático! Enfatizou Hatsuo se aproximando da moça. Com as mãos nos bolsos e um cigarro no canto da boca, observando o céu estupidamente estrelado com um certo sorriso de contemplação. 

- A noite está tão graciosa, não vejo nenhuma nuvem agourenta no céu, consegue ver? Ohhh, mil perdões, creio que não possa ver, está prestes a se afogar no próprio sangue. Eu lamento muito! Quanta deselegância da minha parte!
- O céu já foi mais azul, estávamos mais próximos do cosmos, você sabia? Mas a humanidade evoluiu na ganância da própria vaidade, por isso não prezo nenhum carisma pela vossa espécie. Agora, chega de pronunciamentos baratos sobre a vida, a natureza humana, no fim, tudo isso não vale grande coisa, acredite.

Hatsuo apanhou o corpo da moça como um pedaço de pano ensanguentado, ela emanava os últimos suspiros de vida. O jovem vestido de preto selou seus lábios finos e cheirando a cigarro, encerrou a agonia de Carmem, dando-lhe uma leve mordida em seu pescoço quase desfalecido. Houve ali o último sopro de vida divina, era a morte da menina e junto às folhas e cascalhos da rua estreita e pouco iluminada, escurecia para sempre o reluzir daquele olhar manso. Morte e nascimento, luz e trevas. Foi ali na rua sem nome o despertar da criatura faminta e impaciente, era Carmem vestida de vermelho, renascia para sua nova vida, agora geniosa e imortal.

Hatsuo acompanhava a lentidão das pálpebras de Carmem, a agonia empalidecida e finalmente o grande despertar.  - Eu te saúdo menina, será um prazer te apresentar as maravilhas da noite. Ela olhava indecisa para o próprio sangue, observava cada detalhe do local onde estava.

- O que houve aqui?
- Carmem, você sofreu um terrível acidente, seu namorado não resistiu aos ferimentos e infelizmente faleceu. Eu sinto muito!
- André está morto? Por um momento, frações de segundos, para ser exata, uma lágrima ensaiava cair, mas não desabou. Carmem sentiu profundamente a morte de André, mas sua austeridade não permitia que chorasse por ele. Subitamente levantou-se, ajeitou os cabelos e deu o primeiro passo longe de Hatsuo.

- Para onde pensa que vai?
- Como assim? Para onde? Para minha casa, que pergunta estúpida.
- Moça tola, vai para sua casa?! Vestida assim, toda arrebentada?! Posso imaginar a cena o quão hilária seria – “Olá mamãe, não se preocupe, estou bem, sofri um rápido incidente. André está morto, mas eu estou bem, o que preparou para o jantar?”

E gargalhou até soluçar.


- Tudo pra você não passa de uma piada! O que leva a sério?
- A sério? Humm, tenho que pensar um pouco, posso responder uma outra hora? Precisa aprender, menina tola, acha mesmo que deve levar tudo a sério? Não enxerga a sua volta, as pessoas, o sistema político, a economia nacional, o Mundo. Também não precisa responder agora, não esquenta a cabeça com isso, temos muito tempo para pensar. Mais gargalhadas infindas.

- Já não suporto mais ouvir você rir. Esquivou-se, dando as costas para Hatsuo.
- Ainda é cedo, não completamos nem uma hora juntos. Precisa ser mais cautelosa com as palavras. Dessa maneira vou me zangar e a senhorita irá se arrepender e lamentar minha ausência.
- Está me ameaçando?
- Carmem, não irá questionar quando realmente você for ameaçada pela minha nobre pessoa. Entenda, sou seu amigo.
- Agradeço sua amizade, mas dispenso-a. Tenho que ir para casa, buscar ajuda, não sei o que fazer.
Hatsuo virou-se e partiu sem dizer mais nada. Carmem olhava para o jovem vestido de preto distanciando e gritou: - Não vai me ajudar? Hatsuo sem se virar gritou de volta cautelosamente: - Vai saber o que fazer!

Continua...

Parecia uma fotografia de Robert Doisneau, as frondosas árvores da Avenida Afonso Pena, suntuosamente iluminadas até a altura do Parque das Nações da amada Campo Grande. A luz púrpura pintava as ruas como um filtro dourado, pintava as pessoas, os restaurantes, praças. Na 14 de Julho, na altura da Feira Central, o cheiro dos saborosos sobás e pastéis fresquinhos desafiavam a fome dos motoristas e pedestres, e o fluxo insano de carros e buzinadas confundiam-se com as vozes afinadas e refrãos boêmios das casas de dança da rua 14 de Julho.

O sábado à noite tem seu charme particular, depois das oito horas, todos os casais, apaixonados ou não, povoavam as calçadas dos bares e as largas ruas vão ganhando o aroma afrodisíaco dos caldos, hambúrgueres e outras comilanças oportunas do sábado à noite. E entre os casais apaixonados ou não, estava Carmem, levemente maquiada, folheando o menu da sobaria tipicamente oriental, enquanto André, seu namorado verificava as notificações infindáveis do seu WhatsApp. Ela decidida, já havia escolhido o que iria pedir e levantou-se.
- Vou ao banheiro, já volto! Pegou a bolsa e saiu.

Ao lavar as mãos, incomodou-se com o cheiro de cigarro que saia de uma das portas, havia uma nuvem de fumaça cobrindo o banheiro. A moça continuou lavando as mãos, agora um tanto nervosa e inquieta.

- Não gosta do cheiro de cigarro? Perguntou um homem escancarando a porta com a ponta do pé. Ela completamente assustada e muito furiosa, pegou a bolsa lançando em direção ao homem.
- O senhor deveria se envergonhar, safado! Vá fumar no banheiro da sua mãe, imbecil! E dá-lhe bolsadas e pontapés.

A sobaria estava lotada, um verdadeiro formigueiro, o entra e sai das garçonetes, completavam as entradas do estabelecimento, mas nenhuma outra mulher precisou usar o bendito banheiro naquele momento. O homem gargalhava esquivando-se dos arremessos violentos e tapas da jovem. - Acalme-se mulher, por favor! Ofegante, ela sentou no chão. O homem estendeu a mão, ofereceu ajuda. Ela notou a beleza nipônica do jovem solicito vestido de preto, "Até que ele é bonitinho", pensou rapidamente, mas a fúria tomou conta novamente de seus pensamentos. Carmem bufava.


-Sou Hatsuo, peço perdão por assustá-la. Estou mor-tal-men-te arrependido por ser o motivo de sua agonia. Ela estarrecida, olhava fixamente para o rapaz falante. Encantada por aqueles olhos miúdos, e todo o ambiente perdia o seu som, uma espécie de quietude se aproximava como a paz serena de um passeio agradável em campos floridos, sem o farfalhar dos pássaros e dos pequenos insetos. Não pensava em nada, inclinou a cabeça, ­sutilmente sorrindo, voltou a realidade do banheiro vazio com a voz alta do rapaz vestido de preto, agora gritando repetidamente, - “Moça, moça? Carmem ficou de pé, arrumou os cabelos e voltou para a mesa buscando agir normalmente, o que era praticamente impossível. Ela pretendia compartilhar o incidente com André, chegou a decidir falar antes de sentar, mas mudou de ideia ao notar que a atenção do rapaz pertencia somente ao importuno do celular. Mais uma vez.

Após o silencioso jantar, o casal resolveu dar uma volta pela região central em busca de alguma sorveteria ou qualquer outro canto que tivesse algo para adoçar o resto da noite. No sinal da Rui Barbosa com a Afonso Pena, a moça viu Hatsuo encostado na parede de uma farmácia, o rapaz vestido de preto fumava seu cigarro e observava os carros. – Deve ser garoto de prog..., chegou a sussurrar, mas foi interrompida por André.

- Carmem? falando com você!
- Desculpe, mas sobre o que você estava falando mesmo?
-  É brincadeira, você não está me dando um mínimo de atenção sequer! O que está acontecendo?
- Atenção? Olha só quem fala, o rei da atenção! Você não larga o celular nem para ir ao banheiro. Após a afirmativa de Carmem, uma atmosfera silenciosa e inquisidora tomava conta da fatídica viagem. Voltaram para casa introspectivos, ela decidiu admirar a paisagem já conhecida afim de evitar mais desgostos com André. O silêncio reinou até a entrada do bairro Santa Luzia onde a moça morava com os pais. André, a fim de deixar a namorada o mais rápido possível escolheu um atalho. Pisou no acelerador afim de irritar a menina e em uma curva, perdeu o controle, no meio da rua estreita, deparou-se com um homem parado, era Hatsuo impedindo a passagem, mas a figura havia desaparecido em um piscar de olhos. André não teve tempo de frear, capotou o carro três vezes antes de colidir contra um muro.

Continua...