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Talvez não seja uma sensação ímpar, uma espécie de paz espiritual deixar o celular de lado e permitir-se ouvir somente a musicalidade da chuva. Um sorriso é inevitável. O relógio marcava quase sete da noite, as luminárias ao longo da rua e a nobre chuvinha decidiam a aquarela da noite. Para um bom observador a simplicidade daquela ocasião brindava um dia turbulento. Ouvir a noite chuvosa fez repousar o corpo exausto e a mente corriqueira. 


Eu vigiava cada detalhe da janela de casa, o asfalto molhado, algumas pessoas andando depressa na tentativa de esquivarem da chuva ou até caminhando lentamente sem se importarem em molhar-se. E eu na janela na companhia da minha pequena gatinha Lucíola olhavamos atenta aos movimentos.  Esses instantes de relaxamento e contemplação são terapêuticos, naturalidades assim passam despercebidas, vivemos sempre correndo, olhamos para tudo sem enxergar nada. 


Quanto descanso para um breve instante, porém meu celular que esqueci em algum canto da casa começou a chamar, o toque era uma simples canção de uma voz querida, a música que estava tocando era "Le grand sommeil" de Etienne Daho, um toque personalizado da minha mãe. Ao invés de atender rapidamente, cantarolei alguns versos. Depois atendi a chamada, minha mãe havia ligado para me desejar bom descanso e dar beijinhos de boa noite. Finalizei a chamada e agradeci por mais esse dia que havia se encerrado. E cantando os trechinhos de "Le grand sommeil" lembrei de um termo bonito, gratidão, o que costumeiramente os franceses chamam de reconhecimento, "Reconnaissance".



São todos estranhos, esses que caminham como eu. No subúrbio, na madrugada, a caminho do trabalho. Vão em silêncio olhando para o vazio, alguns cochilam, quando encontram no coletivo um lugar para se sentar. Tem os que ficam espremidos, uns contra os outros, parecendo cansados, antes mesmo de iniciar a rotina do dia.


São homens e mulheres, esses que vão para as fábricas, construções, lutar pelo pão, o sustento dos familiares, dos filhos. A luta para continuar a viver. E vejo em seus olhos, tristeza. O corpo magro, mostra a falta do alimento de qualidade. As vestes demonstram estar desbotadas, entregando o uso diário. No frio vi por várias vezes, os que passavam por mim, encolhidos, com as mãos enfiadas nos bolsos, procurando calor.


São os desfavorecidos, de empregos que lhes paguem o que merecem. São os assalariados, que recebem um salário tão pequeno, quanto a sua crença de uma vida melhor.


São esses que passam na rua por mim, com a cabeça baixa, parecendo ter cometido tantos pecados, que os olhos só encontram o chão. Não se interessam pelos outros estranhos que cruzam por eles, caminham em seus destinos preocupados, com as dívidas, a fome e sua própria sobrevivência.


São esses estranhos que engradecem a indústria, a lavoura, e fomenta a economia, o crescimento do País. Esses que em sua ignorância, enfrentam os empregos mais hostis, e insalubres. Desprovidos de educação, cultura, semianalfabetos, são os que constroem o mundo em que vivemos.


Os pobres que cheiram a suor, que emanam tristeza, que pedem com seus olhos tristes dias melhores. E a vida continua.