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''Agosto é mês do cachorro louco", já dizia o vô Vicente. Espelho se quebrou, sete anos de azar, maltratou um animal, o Saci vem castigar. E foi assim que em uma tarde seca de agosto, sentado na sua poltrona verde, tomando café quentinho, vô Vicente nos chamou para sentar e sossegar o espírito porque já estava ficando tarde demais para sassaricar.

- Vou contar uma estória, assim vocês ficam quietinhas até a hora do jantar. Essa estória é do Juca Peste, um menino muito levado que viu o Saci de perto. Escutem com muita atenção, porque o Juca Peste morava no sítio e todos do campo conhecem a estória dele. 

Seu Tonho era agricultor da região de Ladário, sempre amedrontava os filhos contando as peraltices do Saci. Jonas, o filho mais velho não  importava muito com os causos contados pelo pai, mas no fundo não se metia a besta por aí de noite, só por precaução. Era Juca, o filho caçula que escutava com muita atenção as palavras do pai e se julgava pronto para enfrentar qualquer assombração. Rosavânia, mãe dos  meninos cuidava o relógio todo fim de tarde, primeiro para ajeitar a mesa do jantar para receber Tonho e Jonas e também porque depois das seis horas não era seguro ficar perambulando, ela acreditava que quando o sol fosse embora todas as almas que não descansaram em paz vagavam sem rumo pelas trevas. Naquele instante Tonho voltava para casa com as ferramentas de trabalho e de longe perguntou:

- Rosa, cadê Juca?
- Ah preto, deve estar vindo. Jonas o deixou lá perto do açude com os meninos.

- Pai, Juca não é besta de ficar enrolando por aqueles lados! Completou Jonas, se preparando para tomar banho. Tonho esperou mais alguns minutos e nada de Juca voltar, impaciente calçou as botas para andar no mato e saiu bufando. Tonho embrenhou-se no matagal e bem longe ouviu alguns assovios tristes, mas continuou a caminhada atrás do pequeno. Então, parou de caminhar e atento olhou para todos os lados que nem bicho arisco. De repente surgiu do meio dos arbustos Juca gritando, apavorado, o menino viu o pai e se jogou nos seus braços tremendo de medo.

- Pai, o senhor ouviu? 
- Onde você estava guri? Eu e sua mãe estávamos preocupados por demais.
- Estava jogando bola com os filhos do Zé e do Beto pra baixo do açude. Depois ouvimos uns assovios se aproximando. Foi quando o Fernandin falou que podia ser saci, então corremos desembestados.

Os dois voltavam para casa e andavam depressa porque aqueles assovios não cessavam e junto daquele som perturbador uma ventania levantava a terra vermelha do chão. As árvores sacudiram os galhos sem parar, cobrindo o chão de folhas e frutos, logo formou-se uma parede de poeira dificultando a visão, então uma gargalhada estridente passou pelos dois.

- Saci, saci, é saci! Gritava Tonho protegendo Juca com os braços. Mas a ventania tinha se acalmado, depois do susto. Tonho catou Juca do chão e tratou de correr com o guri no colo. Rosavânia estava apreensiva no portão esperando os dois.

- Jonas já estava indo atrás de vocês. Esbravejou com as mãos na cintura. 
- Já para dentro os dois e Juca trata logo de tomar banho e sossegar. Depois de jantar, o menino não conseguira nem dormir e sussurrava.

- Será que foi mesmo saci, Jonas você precisava ter visto, um redemoinho cobriu eu e o pai no meio das mangueiras.
- Você que não é mané de descobrir. Vai dormir assombração. Juca passou a madrugada encabulado, pensando, pensando... Assim que amanheceu Juca nem esperou o galo cantar, sumiu antes de todos acordarem.

Tonho e Jonas montaram seus cavalos e foram procurar o menino sumido. Foram de casa em casa até chegarem na casa de Beto. 

- Tonho uma hora dessas?! Recebeu Beto sorrindo porque já era hora de almoçar.
- Pois é rapaz, Juca sumiu!
- Não esquenta, ele deve está brincando por aí.
-  O pequeno tá sumido desde cedo...
- Seu Tonho está procurando Juca?
- Estou sim Bernardo, você sabe de alguma coisa?
- Ontem quando corremos assustados, Juca disse que voltaria lá no campo pra esperar a assombração aparecer...

Já era quase meio dia quando os três saíram atrás de Juca.
Os cavalos estavam inquietos, os pássaros pararam de cantar, Beto percebendo o silêncio avisou:
- Está tudo muito tranquilo por aqui, vamos ficar atentos, olho aceso!! Tonho cavalgava na frente do lado de Beto e Jonas atrás. O rapaz segurava seu chapéu, pois o vento começava a assoprar de longe. Jonas prestou atenção no silêncio que se estabeleceu após a rajada de vento, depois não via mais seu pai nem Beto.

- Pai. Chamou o jovem. Ninguém respondeu.
- Jonas! Uma voz doce o chamou. O rapaz ficara encabulado, de quem era a voz?! Não podia ser nenhuma moça que ele conhecia, pois o que ela estaria fazendo sozinha? Se ela estivesse em perigo, seu chamado não seria tão sereno.
- Jonas, venha me ver... A voz se aproximava a cada silêncio que fazia. O rapaz arregalou os olhos, deu meia volta e disse:
- Vou não! E cavalgou depressa pelo caminho que veio.
- Ô rapaz onde você estava? Perguntou Tonho brava que só.
- Depois eu conto, vamos caçar Juca.
- Eu estava falando pro seu pai, Juca deve estar escondido, esperando ver assombração.

A tarde já se despedia, deixando o escuro se espalhar pelos campos. Os três pararam perto do açude onde Juca costumava brincar. Tonho cabisbaixo, não deixava de pensar no pequeno, Jonas ajudava Beto a preparar uma fogueira, mas o vento apagava as chamas que se formavam e não tinha jeito, a luta agora era contra o vento. Uma parede de terra cobriu os três homens que protegiam os olhos, o vento que assoprava trazia um redemoinho de folhas e galhos e junto uma risada triunfante, era o pestinha do cerrado se divertindo com o pavor dos homens, rasgando os galhos das mangueiras, levantando a terra branca até o céu.

- Sai pra lá, sai pra lá! Gritava Tonho de olhos fechados. E o Saci surgiu entre assovios e poeira.

- Suas crianças são danadas e Saci gosta de crianças travessas! O Diabinho rodava sem parar no meio da ventania, rindo e se divertindo muito com o pavor dos três homens.

- Ô peste! Bufava Beto.
- Saci é pior que isso, respondeu Jonas.
- Não, ele não é tão ruim assim Jonas, eu tô falando daqueles guris. Fizeram coisa errada então ele veio castigar.
- O Homem sabe o que diz, sou justo, protejo a natureza contra todo o mal, peguei sua criança usando um elástico para matar os pássaros do cerrado, tentou acertar uma linda rolinha que se banhava nas águas do açude, não permiti tamanho disparate contra a natureza, mas vi que ele aprendeu a lição.

- Cadê Juca peste?! Gritava Tonho.

A ventania cessou e os três abriram os olhos, o redemoinho subira ao céu se espalhando entre as estrelas. Os três admiravam aquele fenômeno muito assustados, foi ai que Juca surgiu chorando arrependido, pois aprendeu que não deve maltratar os bichos da natureza.

Então Juca peste abraçou o pai, que logo avisou:
- Agora promete que respeitará a natureza, se não já sabe, o Saci vem te buscar! Os três sorriram contentes, menos Juca peste que soluçava arrependido.


 


Os elementais da natureza recebiam o jazigo tão terno que havia preparado para acomodar o que antes era o corpo alvinegro do meu gato Cuca. Que saudades das suas andanças e peraltices. Vá em paz meu amigo! Recordo com muita tristeza, apesar de corridos sete dias de sua inevitável morte. Recente é a memória de sua presença nessa casa. Hoje o dia escureceu depressa, nevoando os tons alaranjados e rosados, a noite matava os raios solares, calando-os, calando todo os seres diurnos e florais. Só o silêncio do anoitecer e a escuridão confortavam meus olhos, era tempo de repousar meu corpo no deleite dos lençóis macios, mas nem mesmo esse aconchego permitia que eu finalmente dormisse.


Buscava reconfortar-me em um lado que pudesse adormecer, virava para a direita, para esquerda, dobrava os joelhos, esticava-os. O sono aproximava-se lentamente, como uma locomotiva acenando entre as neblinas de uma estrada sem fim. Suplicava ao deus do sono, mas em uma distração, vejo algo reluzir do lado de fora do quarto, “será um relâmpago, alguma tempestade se aproximando?” Para fora da janela vejo o céu carrancudo, nuvens baixas vedando as estrelas velhas desse meu pedaço celeste. O reflexo humano surpreende, o reluzir brinca novamente com minha inteligência, mesmo com o rosto para fora da janela, uma luz brilha para fora do quarto chamando a minha atenção. Sigo a intuição, acendo a luz do corredor, ela falha, até a energia está aprontando uma travessura comigo. Nenhuma bendita luz acende. Sigo no escuro, o reluzir aparece em outro cômodo. Corro para a direção dela e ouço um miado fraco, como se Cuca estivesse por aqui.  


O miado repete o som vagarosamente, só que agora sem o susto do reluzir, porém o arrepio sequencial me impedia de agir. Meu corpo trêmulo, apesar de imóvel, sentia a frieza do ecoar daquele ruído fantasmagórico. Pude mover o pescoço em direção ao epicentro do meu infortúnio. Ao abrir os olhos enxergava a forma felina reluzente bem na minha frente envolta de uma chama azulada, como se fosse uma fogueira queimando sem parar. A aparição me encarava, repetia o seu nome, “Cuca, Cuca...” quase sem força, ajoelhei diante o espectro azulado, algumas lágrimas restantes do luto ensaiavam escorrer pelo meu rosto, tornei a olhar para aquela silhueta etérea, ele levantou a cabeça em direção à janela do corredor que dava vista para o quintal. Olhava em direção, admirando as cortinas bafejarem o frio fúnebre que invadia o corredor. O ser espectral envolto em chamas azuladas inclinava novamente a cabeça para a janela, “Vá” ele diz com o olhar esverdeado, determinando assim meu destino.  Na agonia dessa casa sem som, sem vida me restou obedecer, levantei e acomodei entre a esquadria de madeira, deixei um sorriso para o céu iluminado pelos relâmpagos e trovões. “Eu sabia, uma tempestade estava por vir...”


A solidão era insuportável para alguém que compartilhava seus medos com seu único amigo alvinegro. Cuca e eu somos inseparáveis, não somos meu amigo?! Sua alma fiel na vida e até na morte não ousou partir para os prados dos eternos sem mim.

Ise Albuquerque




O meu coração se partiu junto com aquele que um dia ousou amar, foi embora no último crepúsculo ainda com o aroma das flores recém desabrochadas desse jardim. Sentei-me ali diante do mesmo pé de figueiras, em um banco de madeira onde costumávamos perpetuar nossas promessas. Por que me deixaste tão cedo? Por que não lutou por sua vida, já que prometeu nunca me abandonar? A febre maldita do século o tomou de mim, ela ceifou vidas e abandonou as almas jovens condenando-os a vagar pela eternidade sem rumo.


- William! Sussurrei aos ventos.


- William, repeti agora com os olhos fechados.

- William, ouvi ao longe. Deve ser o eco zombando da minha tristeza. "Some-te daqui tolo ecoar, vá repetir outras lamúrias". Deixa-me aqui, não venha bisbilhotar e zombar, já basta a companhia desses corvos. Deixem-me na santa paz!


E assim entardecia, os corvos crocitavam da minha agonia; um, dois, três, eram vários em ninhada, pareciam festejar, e o motivo da celebração somente a mim não cabia conhecer. O Sabbath maldito dos pássaros já me incendiava os tímpanos, o corvejar passou a me confundir os sentidos e na sanidade já não se podia mais confiar. Os corvos rodeavam, girando, girando com seus olhos vermelhos reluzentes. Eu, abanava os braços para espantá-los, mas em uma confusa visão, os endiabrados assistiam lá de cima todo o meu desespero.


Tentei fugir das gargalhadas demoníacas que vinham do meio da escuridão, mas meu corpo trêmulo parecia não sair do lugar, foi assim que cai na maciez daquela terra negra... restou deitar ali e ficar no chão para silenciar os gritos das aves em festa... e como uma prece, eu repetia...


- William...


Mas naquele instante, somente a terra negra para confortar as lágrimas. No auge da minha exaltação, os pássaros fúnebres cessaram a cantoria. Foi assim que o vi chegar...


- Clarice! Não chore mais, eu te peço...


Com os olhos fechados, eu sorria para o céu, naquela ingenuidade morbidamente romântica, sorria sem mesmo ver a razão da minha alegria, e abrindo e fechando os braços como se tivesse asas naquela terra negra. Ao olhar para o alto notei que os malditos corvos já haviam ido embora. “Graças ao bom Deus”, agradeci! Eu alucinava e acreditava na minha própria loucura...


Ao despertar em um leito rígido, coberto de flores e folhas secas, o sono atemporal ao menos serviu para curar o tormento dessa solidão, em troca, o destino contemplou-me com outros questionamentos existenciais, o que punha em tese a sobriedade de minha sanidade mental.

 

- Por todos os santos! Quanto tempo fiquei aqui? Perguntei ao tolo ecoar. Pobre ecoar! Sua natureza estava destinada a repetir sempre solitário, palavras em qualquer lugar vazio, sem ninguém, sem nada.


Eu olhava para todos os lados, movimentando a cabeça como um recém-nascido. A sensação de leveza estava intrínseca aos meus movimentos perdidos. Questionava a realidade daqueles acontecimentos, depois duvidei da integridade do meu sentido auditivo, que notou uma voz um tanto familiar e a voz chamava meu nome.


- William? Pensei consigo mesma.


- São muitos os questionamentos para esse primeiro dia. A eternidade é nossa companheira e a quietude da morte o nosso repouso, dizia a voz. Um vulto negro cruzou a minha frente como uma brincadeira de esconde-esconde... a voz parecia vir de trás, olhei para lá e na meia penumbra, uma face desprovida de tecidos, músculos e vasos sanguíneos, me observava fixamente com seus dois glóbulos oculares vazios e sujos de lama.


Subitamente, na tentativa de gritar, salivava na agonia de não ouvir a minha própria voz, o meu próprio grito. E o desespero mudo, passou a tirar a razão que ainda restava. Aquela face sem vida estava na minha frente, no reflexo da poça d'água esquecida da chuva, aquela face, era o meu próprio reflexo, acusando-me de ingratidão por ter tido uma vida, um presente divino, a saúde que todos os enfermos condenados à morte tanto pediam à Deus, mas eu neguei tudo por um amor que havia partido para nunca mais voltar...


Por hoje, restou o tolo ecoar, perecendo a minha loucura neste lugar, assombrando a todos que aqui vem passar.

 Ise Albuquerque



Acordei de manhã e lembrei de tudo que havia acontecido. Inácio era a pessoa que eu mais desejava agora, mesmo ele sendo um fantasma muito requintado.


Minha Tia Lucília me mostrou as fotos e documentos dessa casa. As coisas não estavam tão claras como parecia. Inácio era um bom cavaleiro e o seu cavalo era muito bem treinado. Acredito em acidentes, mas depois de olhar os documentos dos bens de Inácio, verifiquei que a irmã dele tomou posse de tudo que ele tinha e transformou o casarão em um bordel para os donos das fazendas da região e Inácio queria montar uma escola de artes para que todos aprendessem a pintar e a conhecer todos os ramos da arte como música clássica. 


Fiquei chocada com a mudança que o casarão tomou depois da morte dele e ela ganhou todos os bens e ficou rica. Os clientes eram fazendeiros e ela negociava com eles para tirar os artistas do local. Janine era o nome dela. 


Inácio uma vez, fez uma pintura de Janine. Ela ficou horrorizada pois ele fez um quadro onde muitos acharam ela linda. Mas ela era linda, e o ciúmes daquelas pessoas por elogiarem a obra do irmão a deixou enfurecida. Ninguém havia elogiado a sua beleza antes. Isso fez com que ela tivesse ódio daquele quadro. Por vezes ela achava que era um golpe do seu irmão para que ninguém falasse com ela, só sobre o quadro.


Misteriosamente Inácio morreu com a queda do cavalo. No mesmo dia o quadro foi queimado. 

Eu precisava falar com Inácio. tudo isso tinha que ter respostas. A morte dele poderia ser um ato de vingança. 


Esperei ansiosa pela noite e quando ela surgiu eu esperei por ele e Inácio apareceu na rua. 

— Clarice. Está uma linda noite e sua beleza só a deixa mais deslumbrante.

Eu sorrio para ele e o abraço, coloco minha cabeça em seu peito e ele me abraça. intrigado, ele me pergunta:


— O que houve Clarice? 

— Eu sei de tudo Inácio. seu acidente, seu cavalo, sua morte e sua irmã. 

— Muitos séculos passaram Clarice. Eu não tenho ideia de como pode me ajudar. Sou agora um ser que vaga na escuridão, sem retorno, condenado e abandonado. 

— Podemos tentar. Você tem poderes. algo que me faça reverter isso tudo. 

Eu vi Inácio pegar uma chave do seu bolso e colocar na minha mão. Ele sorriu e me disse:

— Quando colocar a chave na sua porta você voltará para o meu século uma hora antes do meu acidente. Mas se for arriscado, não faça nada. A chave te trará de volta em duas horas. 



Eu dou um beijo na boca de Inácio e corro até a porta. coloco a chave e sinto uma leve brisa que faz a noite se transformar em dia. 


Muita gente trabalhava no local o casarão estava quase pronto. Alguns cômodos já estavam prontos e vi a irmã do Inácio segurando um espelho de um metro de tamanho e subindo para o quarto dela. Logo em frente Inácio estava dando voltas com o seu cavalo enquanto alguns homens transportavam as madeiras para o interior do casarão. Janine estava na janela no segundo andar, ela estava com o espelho na mão e o reflexo do Sol quase me cegou. eu coloquei o braço na frente e percebi o que ela pretendia fazer. 


Corri para a estrada onde Inácio passaria e quando o vi chamei desesperadamente. Ele estava correndo com o cavalo e a Janine percebeu que ele iria parar e movimentou o espelho jogando os raios do Sol em sua visão, mas o Inácio estava olhando para mim e ele conseguiu parar o cavalo e descer com segurança.


Inácio gritou com a irmã e disse para tomar cuidado com  o espelho pois poderia causar um acidente. 


Ele veio até mim e eu entreguei a chave para ele.


— Onde achou essa chave? 

— Estava comigo o tempo todo Inácio. 

De repente Inácio se lembrou de tudo.

 — A chave tinha a memória de tudo que passei. Você me salvou Clarice. Mas você tem que voltar para o seu tempo. Você não pertence a este lugar. 

— Quero ficar com você Inácio. Agora não é mais um fantasma e temos uma escola de artes para montar. 

Eu vi o seu sorriso. Nós nos abraçamos e agora teríamos uma nova vida pela frente.



Foi em uma dessas noites sem sono que o vi passar. Seus passos rígidos propositalmente atormentaram do meu breve dormitar. No corredor mal iluminado só o relógio de cuco ecoava pelo casarão de aspecto soturno. Caminhei a procura daqueles passos insistentes e distraída esbarrei na porta da sala que abriu-se silenciosamente. E no canto da sala uma luminária acesa desvendava algo. Aproximei para apurar tal mistério. Para meu espanto era um rapaz, meus batimentos cardíacos dispararam e o jovem sorriu do meu extremo desespero.


- Senhorita, carpe noctem!
- Quem é você? - Me chamo Inácio, vim vê-la.
- O que faz dentro da minha casa?
- Vim vê-la.


Encarei-o e ele fez o mesmo com um sorriso sutil. Seu olhar atraente pudera revelar segredos através dos olhos negros, com um certo ar de mistério. O medo havia passado. Seu nome era Inácio e foi assim que o conheci. Ao me perder por aqueles traços, ouvindo o som de sua voz descrevendo o quão belo poderia ser uma noite silenciosa. Inácio sorriu e percebeu que eu não estava muito atenta naquele discurso existencialista e bucólico, então gentilmente me propôs um convite.

- Aceita acompanhar-me em um passeio? Não hesitei em logo aceitar, tinha a leve impressão de que esse passeio seria muito agradável. Inácio segurava minha mão carinhosamente e caminhamos rumo ao caramanchão que debaixo de um luar prateado assemelhava-se a uma pintura renascentista. E foi nesse espírito encantado, admirando a aquarela da madrugada, entre orquídeas e lírios ele revelou sua visita.

- Clarice, confesso a minha ansiedade para esse momento.
- Eu não entendo, não te conheço, nunca te vi por aqui, como sabe meu nome?
 

- Eu conheço você Clarice, vieste para este casarão no começo desse ano junto com seus pais e seu irmãozinho. Encantei-me por seus olhos que de tão serenos coloriu novamente este lugar. A pronúncia do vosso nome é canção para meu silêncio.

- Você mora aqui por perto? Perguntei ansiosa para que a resposta fosse sim.
- Estou sempre por perto! Por que senhorita? - Podemos nos ver outras vezes, eu gostaria muito.
- Ah! Fico muito contente de saber que deseja me ver novamente. Inácio aproximou seu rosto ao meu tocando meus lábios, beijou-me carinhosamente e sorriu.
- Clarice, amanhã nos encontraremos novamente, agora a deixarei em seus aposentos para que descanses, amanhã fará um lindo dia. 

Não tinha como não se encantar por Inácio, não eram apenas o seu traje nobre, ele realmente era um príncipe, meu príncipe. Na manhã seguinte contei meu encontro para minha tia-avó Lucília, ela ficou pálida e questionou.

- Clarice, me diz uma coisa, como se chamava o rapaz?
- Seu nome era Inácio! Tia Lucília arregalou os olhos e me arrastou até a sala onde apanhou um álbum de fotografias da família que construiu o casarão no século XVII.
- Era esse o jovem? Perguntou apontando Inácio na foto.
- Sim, ele mesmo. Tia Lucília pôs a mão na boca com um certo espanto e olhava para mim com os olhos arregalados.

- Filha, Inácio Von Lichstein faleceu em 1837 quando cavalgava pelo jardim e caiu batendo a cabeça nas pedras aos vinte e cinco anos de idade. Sentei na poltrona estarrecida. Quis falar e lamentar, mas minha voz prendeu-se dentro do meu corpo trêmulo.

- Acredito que sua alma protege essa mansão, ele foi muito feliz aqui. Filha você irá ver Inácio novamente já que assim desejou. Completou Tia Lucília. 

Todas as noites eu dormia ansiosa para vê-lo chegar, saudando carpe noctem novamente e em seguida passearmos pelos bosques, somente eu, Inácio e toda a paisagem invisível.
 



Ise Albuquerque 
Relapsos de sonhos e realidade (2013)



Conto inspirado na música: Cachorrinho - Ferrugem


Pedro estava terminando de arrumar os copos quando o celular tocou.

Enquanto Patrícia desmarcava ao telefone o encontro, ele olhava para a mesa. Com tudo a postos: pratos, talheres, copos, descansos para as panelas, velas e a caixinha de veludo, na ponta da mesa, que ele pretendia esconder na gaveta perto do fogão para pegar de surpresa quando fosse buscar a lasanha.

Tinha levado o dia todo cuidando do pedido e preparando a surpresa com muito carinho e amor. Até se arriscou a fazer ele mesmo a lasanha, pois sabia que era o prato preferido da namorada.

Mas a ligação mudou tudo.

Patrícia tinha simplesmente desmarcado para encontrar as amigas no shopping, querendo relembrar os tempos de escola e esquecer os desafios da vida. Por algumas estarem de passagem pela cidade, ela achou que era motivo suficiente para fazer essa mudança repentina de planos.

E o pior? Ela nem parecia minimamente chateada, estava completamente empolgada e agitada com aquilo tudo.

Pedro sentou, frustrado, enquanto refletia sobre a vida que estava levando e o rumo do relacionamento deles. Era difícil vislumbrar um futuro promissor quando eles pareciam estar em momentos tão diferentes.

A cada dia ele percebia que seus olhares e pensamentos tomavam rumos distintos…

Ele queria assentar e planejar aquele cotidiano simples e tranquilo que vai sendo desejado com o amadurecimento; ela parecia buscar a agitação do início da vida adulta e reviver aqueles anos incoerentes e sem rumo do início da faculdade.

Billy entrou na cozinha abanando o rabo e Pedro se ajoelhou para fazer carinho no seu maior companheiro de vida.

Cachorros sempre o empolgaram, mas Billy foi o primeiro que realmente conquistou um lugar especial em seu coração. Pela primeira vez, ele se sentia um pai; o que poderia soar estranho para as outras pessoas, mas algo totalmente compreensível para qualquer pai (ou mãe) de pet.

Olhando para os olhos caramelos, ele novamente lembrou de Patrícia e a confusão só aumentou em sua mente.

Será que aquela ligação teria sido um sinal de que a vida deles estava desconectada de vez?

Resignado, ligou o forno, colocou a lasanha e esperou que ela ficasse pronta enquanto deslizava o feed do Instagram e via as “novidades” da vida dos seus amigos.

Quanta gente adora ficar postando tudo de “incrível” que tem na vida, não é? Mas ele sabia bem o quanto aquelas fotos espetaculares eram rasas e representavam muito pouco do que cada um vivia diariamente.

O forno apitou ao mesmo tempo em que ele abria o novo story da Patrícia, que já estava no shopping às gargalhadas com as três amigas enquanto brindavam com cerveja e uma pizza sobre a mesa.

Fechou o aplicativo, chamou Billy e foi retirar a travessa do forno.

Retirou duas porções da delícia italiana, colocou uma para o cachorro e comeu olhando para a caixinha de veludo, que voltaria para a gaveta do guarda-roupa (e talvez não saísse mais de lá).

O latido animado foi o único motivo que o fez sorrir depois.

Flávia Werneck