Os elementais da natureza
recebiam o jazigo tão terno que havia preparado para acomodar o que antes era o corpo
alvinegro do meu gato Cuca. Que saudades das suas andanças e peraltices. Vá em
paz meu amigo! Recordo com muita tristeza, apesar de corridos sete dias de sua
inevitável morte. Recente é a memória de sua presença nessa casa. Hoje o
dia escureceu depressa, nevoando os tons alaranjados e rosados, a noite
matava os raios solares, calando-os, calando todo os seres diurnos e florais.
Só o silêncio do anoitecer e a escuridão confortavam meus olhos, era tempo de
repousar meu corpo no deleite dos lençóis macios, mas nem mesmo esse aconchego
permitia que eu finalmente dormisse.
Buscava reconfortar-me em um lado
que pudesse adormecer, virava para a direita, para esquerda, dobrava os
joelhos, esticava-os. O sono aproximava-se lentamente, como uma locomotiva
acenando entre as neblinas de uma estrada sem fim. Suplicava ao deus do sono,
mas em uma distração, vejo algo reluzir do lado de fora do quarto, “será um
relâmpago, alguma tempestade se aproximando?” Para fora da janela vejo o céu
carrancudo, nuvens baixas vedando as estrelas velhas desse meu pedaço celeste.
O reflexo humano surpreende, o reluzir brinca novamente com minha inteligência,
mesmo com o rosto para fora da janela, uma luz brilha para fora do quarto
chamando a minha atenção. Sigo a intuição, acendo a luz do corredor, ela falha,
até a energia está aprontando uma travessura comigo. Nenhuma bendita luz
acende. Sigo no escuro, o reluzir aparece em outro cômodo. Corro para a direção
dela e ouço um miado fraco, como se Cuca estivesse por aqui.
O miado repete o som
vagarosamente, só que agora sem o susto do reluzir, porém o arrepio sequencial
me impedia de agir. Meu corpo trêmulo, apesar de imóvel, sentia a frieza do
ecoar daquele ruído fantasmagórico. Pude mover o pescoço em direção ao
epicentro do meu infortúnio. Ao abrir os olhos enxergava a forma felina
reluzente bem na minha frente envolta de uma chama azulada, como se fosse uma
fogueira queimando sem parar. A aparição me encarava, repetia o seu nome,
“Cuca, Cuca...” quase sem força, ajoelhei diante o espectro azulado, algumas
lágrimas restantes do luto ensaiavam escorrer pelo meu rosto, tornei a olhar
para aquela silhueta etérea, ele levantou a cabeça em direção à janela do
corredor que dava vista para o quintal. Olhava em direção, admirando as cortinas
bafejarem o frio fúnebre que invadia o corredor. O ser espectral envolto em
chamas azuladas inclinava novamente a cabeça para a janela, “Vá” ele diz com o
olhar esverdeado, determinando assim meu destino. Na agonia dessa casa sem som, sem vida me
restou obedecer, levantei e acomodei entre a esquadria de madeira, deixei um
sorriso para o céu iluminado pelos relâmpagos e trovões. “Eu sabia, uma
tempestade estava por vir...”
A solidão era insuportável para
alguém que compartilhava seus medos com seu único amigo alvinegro. Cuca e eu
somos inseparáveis, não somos meu amigo?! Sua alma fiel na vida e até na morte
não ousou partir para os prados dos eternos sem mim.
Ise Albuquerque
- William! Sussurrei aos ventos.
-
William, repeti agora com os olhos fechados.
-
William, ouvi ao longe. Deve ser o eco zombando da minha tristeza. "Some-te daqui
tolo ecoar, vá repetir outras lamúrias". Deixa-me aqui, não venha bisbilhotar e zombar,
já basta a companhia desses corvos. Deixem-me na santa paz!
E assim entardecia, os corvos crocitavam da minha agonia; um, dois, três, eram vários em ninhada, pareciam festejar, e o motivo da celebração somente a mim não cabia conhecer. O Sabbath maldito dos pássaros já me incendiava os tímpanos, o corvejar passou a me confundir os sentidos e na sanidade já não se podia mais confiar. Os corvos rodeavam, girando, girando com seus olhos vermelhos reluzentes. Eu, abanava os braços para espantá-los, mas em uma confusa visão, os endiabrados assistiam lá de cima todo o meu desespero.
Tentei fugir das gargalhadas demoníacas que vinham do meio da escuridão, mas meu corpo trêmulo parecia não sair do lugar, foi assim que cai na maciez daquela terra negra... restou deitar ali e ficar no chão para silenciar os gritos das aves em festa... e como uma prece, eu repetia...
- William...
Mas naquele instante, somente a terra negra para confortar as lágrimas. No auge da minha exaltação, os pássaros fúnebres cessaram a cantoria. Foi assim que o vi chegar...
- Clarice! Não chore mais, eu te peço...
Com os
olhos fechados, eu sorria para o céu, naquela ingenuidade morbidamente
romântica, sorria sem mesmo ver a razão da minha alegria, e abrindo e fechando
os braços como se tivesse asas naquela terra negra. Ao olhar para o alto notei
que os malditos corvos já haviam ido embora. “Graças ao bom Deus”, agradeci! Eu
alucinava e acreditava na minha própria loucura...
Ao despertar em um leito rígido, coberto de flores e folhas secas, o sono atemporal ao menos serviu para curar o tormento dessa solidão, em troca, o destino contemplou-me com outros questionamentos existenciais, o que punha em tese a sobriedade de minha sanidade mental.
- Por todos os santos! Quanto tempo fiquei aqui? Perguntei ao tolo ecoar. Pobre ecoar! Sua natureza estava destinada a repetir sempre solitário, palavras em qualquer lugar vazio, sem ninguém, sem nada.
Eu olhava para todos os lados, movimentando a cabeça como um recém-nascido. A sensação de leveza estava intrínseca aos meus movimentos perdidos. Questionava a realidade daqueles acontecimentos, depois duvidei da integridade do meu sentido auditivo, que notou uma voz um tanto familiar e a voz chamava meu nome.
- William? Pensei consigo mesma.
- São muitos os questionamentos para esse primeiro dia. A eternidade é nossa companheira e a quietude da morte o nosso repouso, dizia a voz. Um vulto negro cruzou a minha frente como uma brincadeira de esconde-esconde... a voz parecia vir de trás, olhei para lá e na meia penumbra, uma face desprovida de tecidos, músculos e vasos sanguíneos, me observava fixamente com seus dois glóbulos oculares vazios e sujos de lama.
Subitamente, na tentativa de gritar, salivava na agonia de não ouvir a minha própria voz, o meu próprio grito. E o desespero mudo, passou a tirar a razão que ainda restava. Aquela face sem vida estava na minha frente, no reflexo da poça d'água esquecida da chuva, aquela face, era o meu próprio reflexo, acusando-me de ingratidão por ter tido uma vida, um presente divino, a saúde que todos os enfermos condenados à morte tanto pediam à Deus, mas eu neguei tudo por um amor que havia partido para nunca mais voltar...
Por hoje, restou o tolo ecoar, perecendo a minha loucura neste lugar, assombrando a todos que aqui vem passar.
Acordei de manhã e lembrei de tudo que havia acontecido. Inácio era a pessoa que eu mais desejava agora, mesmo ele sendo um fantasma muito requintado.
Minha Tia Lucília me mostrou as fotos e documentos dessa casa. As coisas não estavam tão claras como parecia. Inácio era um bom cavaleiro e o seu cavalo era muito bem treinado. Acredito em acidentes, mas depois de olhar os documentos dos bens de Inácio, verifiquei que a irmã dele tomou posse de tudo que ele tinha e transformou o casarão em um bordel para os donos das fazendas da região e Inácio queria montar uma escola de artes para que todos aprendessem a pintar e a conhecer todos os ramos da arte como música clássica.
Fiquei chocada com a mudança que o casarão tomou depois da morte dele e ela ganhou todos os bens e ficou rica. Os clientes eram fazendeiros e ela negociava com eles para tirar os artistas do local. Janine era o nome dela.
Inácio uma vez, fez uma pintura de Janine. Ela ficou horrorizada pois ele fez um quadro onde muitos acharam ela linda. Mas ela era linda, e o ciúmes daquelas pessoas por elogiarem a obra do irmão a deixou enfurecida. Ninguém havia elogiado a sua beleza antes. Isso fez com que ela tivesse ódio daquele quadro. Por vezes ela achava que era um golpe do seu irmão para que ninguém falasse com ela, só sobre o quadro.
Misteriosamente Inácio morreu com a queda do cavalo. No mesmo dia o quadro foi queimado.
Eu precisava falar com Inácio. tudo isso tinha que ter respostas. A morte dele poderia ser um ato de vingança.
Esperei ansiosa pela noite e quando ela surgiu eu esperei por ele e Inácio apareceu na rua.
— Clarice. Está uma linda noite e sua beleza só a deixa mais deslumbrante.
Eu sorrio para ele e o abraço, coloco minha cabeça em seu peito e ele me abraça. intrigado, ele me pergunta:
— O que houve Clarice?
— Eu sei de tudo Inácio. seu acidente, seu cavalo, sua morte e sua irmã.
— Muitos séculos passaram Clarice. Eu não tenho ideia de como pode me ajudar. Sou agora um ser que vaga na escuridão, sem retorno, condenado e abandonado.
— Podemos tentar. Você tem poderes. algo que me faça reverter isso tudo.
Eu vi Inácio pegar uma chave do seu bolso e colocar na minha mão. Ele sorriu e me disse:
— Quando colocar a chave na sua porta você voltará para o meu século uma hora antes do meu acidente. Mas se for arriscado, não faça nada. A chave te trará de volta em duas horas.
Eu dou um beijo na boca de Inácio e corro até a porta. coloco a chave e sinto uma leve brisa que faz a noite se transformar em dia.
Muita gente trabalhava no local o casarão estava quase pronto. Alguns cômodos já estavam prontos e vi a irmã do Inácio segurando um espelho de um metro de tamanho e subindo para o quarto dela. Logo em frente Inácio estava dando voltas com o seu cavalo enquanto alguns homens transportavam as madeiras para o interior do casarão. Janine estava na janela no segundo andar, ela estava com o espelho na mão e o reflexo do Sol quase me cegou. eu coloquei o braço na frente e percebi o que ela pretendia fazer.
Corri para a estrada onde Inácio passaria e quando o vi chamei desesperadamente. Ele estava correndo com o cavalo e a Janine percebeu que ele iria parar e movimentou o espelho jogando os raios do Sol em sua visão, mas o Inácio estava olhando para mim e ele conseguiu parar o cavalo e descer com segurança.
Inácio gritou com a irmã e disse para tomar cuidado com o espelho pois poderia causar um acidente.
Ele veio até mim e eu entreguei a chave para ele.
— Onde achou essa chave?
— Estava comigo o tempo todo Inácio.
De repente Inácio se lembrou de tudo.
— A chave tinha a memória de tudo que passei. Você me salvou Clarice. Mas você tem que voltar para o seu tempo. Você não pertence a este lugar.
— Quero ficar com você Inácio. Agora não é mais um fantasma e temos uma escola de artes para montar.
Eu vi o seu sorriso. Nós nos abraçamos e agora teríamos uma nova vida pela frente.
Conto inspirado na música: Cachorrinho - Ferrugem