O Terror e Outros Gêneros em Tempos de Ansiedade por Zeh Maurício Ferreira



Nenhuma outra espécie do mundo pode se comunicar como o ser humano. O nosso potencial de raciocínio nos possibilitou a concepção de sinais e símbolos os quais usamos para reproduzir realidade e pensamentos, proporcionando a capacidade não só de transmitir conceitos e impressões, como para registrá-las, uma ferramenta essencial para o processo contínuo de evolução. É por meio da fala e da escrita que a informação é passada através dos tempos, viabilizando a revisão e modificação de conceitos, refinando conhecimento, provocando desenvolvimento. Neste contexto, os humanos criaram diversas formas de transmissão de ideias, pelo que destaco a que considero a mais eficiente de todas: a contação de histórias.

Show, don’t tell


A expressão em inglês “show, don’t tell”, ou “mostre, não fale” em português, é uma técnica onde o escritor deliberadamente substitui uma descrição mais direta, para uma narração onde os aspectos do que ocorre são demonstrados subjetivamente por reações dos personagens, ou dos efeitos causados no ambiente. Em vez de escrever “uma grande explosão”, por exemplo, o escritor poderia escrever algo como “… a onda de choque lançou-lhe a alguns metros de distância…”. Assim, além de conseguir demonstrar a potência da explosão, evoca-se a memória visual, estimulando a imaginação à cena e intensificando a experiência imersiva. É nessa ideia que a contação de história acaba se tornando uma poderosa ferramenta para propagação de informação. Diferente de textos documentais, frios e pragmáticos, uma história contada usa o subjetivo para fazer refletir, demostrar pontos de vista, mexer com os sentimentos. A ludicidade da contação de histórias é usada para imprimir ideias diretamente na essencia, no primitivo ― a empatia do leitor é trabalhada para haver maior identificação com o que deseja que seja comunicado.



Você não sabe, mas está sendo manipulado!


Mas calma, não é de uma forma negativa. Na contação de história tudo é pensado para desencadear sentimentos ― afinal, é por isso que você consome histórias. Para tanto, um escritor deve pensar a todo o tempo nas reações que quer causar no leitor. Quanto mais empatia for gerada, mais o leitor estará preso a leitura. É assim que se é pego analisando, compreendendo e até aceitando algo que nunca se imaginaria plausível. É desse jeito, ao se contar quem era o ser humano antes de virar palhaço psicopata caótico, capaz de executar as maiores atrocidades, que a simpatia e até a torcida do público são conquistadas. É dessa forma que um egocêntrico e perigoso traficante de metanfetamina se torna um anti-herói, ao ser demonstrado seu recém diagnóstico de câncer, sendo ele um simples professor de química de ensino médio e um amoroso pai de um adolescente com deficiência.

Formas de contar histórias têm aos montes e para todos os gostos, mas todas elas têm em comum o objetivo de mexer com sensações. Não importa se for algo raso ou profundo, se efetivo, se termina com um sorriso ou em lágrimas de satisfação.

Queremos sentir tudo, em todo lugar e ao mesmo tempo


E sentir é o que rege esta era que vivemos, onde tudo tem que ser intenso. A Internet e os dispositivos eletrônicos proporcionaram acesso instantâneo a todo tipo de prazer em praticamente todo lugar no globo. A procura por satisfação já não exige grande esforço; recursos para liberar dopamina no cérebro estão disponíveis num intervalo entre o pensamento de mover a mão e o ato de pegar o celular. Temos abundância de diversão, mas nos falta tempo. Se a sensação não é máxima, migramos para outro estímulo para mantermos o alto nível de excitação. Não temos mais paciência de aguardar grandes hiatos para o próximo vídeo que nos instigue. Exigimos o consumo de mídias que nos tomam o menor tempo e que sejam de fácil acesso. E aí está o desafio dos contadores de história da atualidade.

You shall not pass beyond page two hundred

Antes da escrita, a contação de história era realizada apenas no boca a boca, com a audiência sentada em volta de uma fogueira sob as estrelas. Como tudo na humanidade, muito de lá para cá se diversificou, tanto nas formas de contar, como nas formas de propagar histórias. Hoje temos em mãos sequências infindáveis de vídeos de durações mínimas providas por redes sociais. Como competir com isso? Um calhamaço de mais de quinhentas páginas excessivamente descritivas? Isso talvez fosse sucesso na época do autor de J. R. R. Tolkien, de O Senhor dos Anéis, mas é algo que está cada vez mais caindo na preferência de uns poucos ― lembrando que leitura, no Brasil, nunca foi um hábito popular. O mundo clama por coisas breves e diretas ― romances de não mais que duzentas páginas, novelas, noveletas e contos.




Deixa eu te contar
Repare no poder desta expressão. Em quatro curtas palavras, você nem introduziu o assunto e já informou ao interlocutor sobre algo interessante a ser contado, provavelmente despertando-lhe a curiosidade. É disso que estou falando, intensidade instantânea. Conseguir isto numa primeira página é o ideal ― no primeiro parágrafo é o suprassumo. As pessoas não querem esperar para serem fisgadas no decorrer de uma narrativa, mas logo em seu início, e isso é uma regra geral ― não importa se numa história mais longa ou uma curta, é preciso estimular o interesse o quanto antes. O ritmo do que se é contado se dá através da observância de vários elementos, porém um deles é o que faz a história mover: o conflito.

Ao sair de casa para ir à padaria, ninguém chega contando sobre a experiência, a menos que tenha tido alguma perturbação na ordem natural das coisas ― um acidente de carro; pessoas discutindo; alguém que tropeçou e derramou todas as compras no chão. ― É preciso que algo extraordinário ocorra para que um evento seja digno de ser contado, sendo o conflito o combustível de qualquer história. Podendo até ser numa narrativa mais arrastada, uma história torna-se interessante mediante os conflitos vividos pelos personagens. E, se estamos falando de um mundo desejoso por consumir histórias curtas que não tomem muito tempo ― principalmente quando consideramos a concorrência desleal com os milhares de vídeos de ínfima duração disponíveis a todo momento ―, talvez uma estrutura narrativa salte aos olhos e se mostre mais adequada a esta realidade ansiosa que vivemos: os contos.

Não é falta de tempo, são outras prioridades


O que faria uma pessoa deixar as redes sociais para ler um texto? Eu sei, é injusto. Primeiro, tem que se contar com a vontade da pessoa em ler. A partir daí a questão é o quão competente um escritor é para manter o leitor cativado no decorrer das páginas ― e quanto mais páginas, mais complexo se torna o trabalho. Em textos mais longos, há maior necessidade de trabalhar personagens, ainda mais se for algo multiplot (histórias com mais de um protagonista). A caracterização de personagens é algo crucial em romances. Eles devem ser falhos, imperfeitos e precisam trilhar um caminho de redenção, é aí onde o escritor deve lapidar para ganhar a empatia dos leitores. Mas, sejamos realistas: onde está o personagem bem trabalhado em vídeos de pessoas fazendo passinhos de dança? Cadê o protagonista lutando contra sua própria personalidade em vídeos de animais fofinhos fazendo alguma gracinha? É como eu falei antes: experiências de máximo gozo num curtíssimo tempo. Tendo isso em mente, a estrutura narrativa onde mais podemos nos aproximar disso são contos. Histórias que exercem sua função em poucas páginas — até em poucos caracteres. É claro que a completa despreocupação com outros elementos na narrativa provavelmente ocasionará o desprezo do leitor na história, mas o próprio tamanho de um conto solicita um menor planejamento.

Porém, se engana quem acha que isto torna a escrita mais fácil. Aliás, para muitos, resumir uma história em algumas poucas páginas pode ser uma tarefa muito mais complicada do que escrever um romance de centenas de páginas.

Menos é mais


Num conto, a descrição de cenas, na sua maioria das vezes, deve prestar o serviço de causar alguma reação ao leitor. Seja curiosidade, suspense, euforia, nada precisa ser descrito se não for para gerar sentimentos. É claro, pode-se descrever a decadência de um quarto para demonstrar o estado de miséria de um personagem (lembram-se do “conte, não mostre”?), por exemplo, mas use tal recurso com cuidado. O desenvolvimento da história deve ser contada dando ênfase no relato de eventos que fazem a história mover do ponto A ao ponto B, tirando qualquer coisa que seja irrelevante. Usando o exemplo de ir à padaria comprar pão, quando se presenciou um acidente de carro, alguém não chegará em casa contando “… o dia estava quente, sem nuvens num céu de azul infinito. Eu estava passando pela esquina da Rua X, quando vi Fulano e acenei…”. Alguém que presenciou um acidente não falará de como o dia estava quente e que encontrou um conhecido, a menos que isso tenha relação direta ao evento que fez a história digna de ser contada. Talvez num texto, mesmo num conto, esses elementos sejam consideráveis para contextualizar, porém, mais uma vez, há que se ter cuidado com a utilização de alguns recursos. Um tanto de prolixidade e o texto deixa de ser um conto e passa a ser uma estrutura narrativa maior.

Da mesma forma, já que não há tanto labor com relação à personagens, diálogos devem ter mais função informativa para a história. Claro, é interessante ter um mínimo de rastreio das personalidades contidas na obra, para não criar discrepâncias entre carateres e falas. Não se pode trazer uma voz tímida a alguém num diálogo e em outro demonstrar essa mesma pessoa com maior segurança ― exceto quando aconteceu alguma mudança que se queira demonstrar.

Aliás, em se tratando de personagens, não é preciso dizer, quanto menos, melhor! Pode-se ter vários ocasionais, mas dois ou três que perpassam por toda a história é mais interessante. Com pouco espaço, a preferência é que tudo no texto esteja voltado ao desenrolar ágil da trama.

História sem fim


Mesmo o conto sendo um texto curto, não quer dizer que o tempo discorrido nele não possa ser equivalente a um período extenso. Pode-se até contar uma história épica, lembrando-se sempre de apenas detalhar o essencial. Pode-se omitir algum intervalo maior, sem especificar nenhum evento, apenas dando uma ideia geral do que ocorreu: “… por anos, fulana viveu seus dias com relativa normalidade, até seus fantasmas voltarem a assombrá-la…”, e assim, voltasse a contar num período onde novos acontecimentos encaminharão para o fim da história.

E por falar nisso, tenha em mente que finais abertos encaixam-se perfeitamente a este tipo de estrutura, visto que a história pode condizer a uma fatia de outra maior. Pode-se ainda ter seu início vinculado a alguma cena que já estava ocorrendo, sendo a história contada no conto apenas uma parte de uma cena. Nesses casos, tanto o início, ou o fim, não estão definidos na fatia de tempo narrada. Este é um tipo de recurso que pode denotar o tanto de habilidade e experiência do escritor, a capacidade de terminar o texto sem que se acabe, parando exatamente no ponto onde tudo que se desejou contar foi contado e deixando para o leitor o necessário para que ele mesmo imagine o que pode ter ocorrido. É uma experiência a mais a agregar ao texto.

Nem todo sorriso de satisfação provém de experiências confortáveis


Como já debatido aqui, experiências sensoriais são os objetivos da contação de histórias e no decorrer da narrativa, que sentimentos despertar, depende muito do momento do relato e o que se pretende passar em cada enxerto. Às vezes, se quer demonstrar características do personagem, outras é um trecho mais informativo, para revelar algo da história, porém o tom da experiência da leitura deve ser regido pelo gênero literário. Sendo uma história de ação, a maioria dela será contada por via de cenas frenéticas que inspiram adrenalina ao leitor. Se for drama, o caminho a ser trilhado pelos personagens despertará tristeza e pesar. Se for terror, o que deve ser trabalhado é o desconforto através do medo e do horror. E, falando em específico sobre este gênero, é importante esclarecer uma dúvida muito recorrente: a diferença entre terror e horror.

Segundo o pesquisador e escritor de ficção literária de horror, Oscar Nestarez: “… o terror seria o prazeroso efeito extraído de um elemento sublime que é posicionado a uma distância apropriada do leitor ou do espectador; e o horror, ao contrário, é aquilo imediatamente à frente”. Sintetizando, terror é a expectativa do que pode ocorrer, enquanto o horror é a sensação frente ao que já ocorreu. O gênero de Terror é mais comumente designado desta forma no Brasil, porém tanto os sentimentos de terror como de horror, são os que orquestram uma história (em inglês, por exemplo, o gênero é chamado de Horror). Seja proveniente de algo sobrenatural ou não, é com a estranheza de coisas impossíveis; com o suspense perante algo terrível prestes a acontecer; com a agonia de alguém em sofrimento físico; com o asco de alguma cena repulsiva, que se instrumentaliza a vivência da leitura. Um leitor de Terror não quer ser levado por um campo de relva verde e flores perfumadas. Ele quer experimentar reinos infernais, ou casas amaldiçoadas, ou manicômios imundos. Ele quer ser tragado para mundos alienígenas com criaturas monstruosas, ou para uma sala onde alguém está sendo cruelmente torturado. É neste momento que descrições são importantes. Não apenas do ambiente, mas das sensações dos personagens ― e aí, sim, quanto mais detalhes, melhor. Sempre que puder, não usar adjetivos ou advérbios ― daí, voltamos ao “show, don’t tell”. Num texto de Terror, o que se quer é causar desconforto e, portanto, é melhor não dizer que o personagem está com dor, mas detalhar o processo que está lhe causando dor e as lesões que estão lhe sendo infligidas. Assim, o leitor não sentirá dor, mas poderá visualizar a cena e se sentirá incomodado. Melhor não dizer que o personagem está com medo, mas demonstrar o que o faz ter medo e as reações dele frente ao perigo iminente. Aliás, a antecipação do que vai ocorrer é uma ferramenta indispensável. A descrição arrastada dos momentos de apreensão que precedem algum evento é o manancial do suspense. Mesmo que deságue em uma cena comum, a descrição da impressão por parte do personagem de que algo está errado, perpassando pela sua expectativa até o desfecho, mesmo que seja de alívio, é bastante agoniante!

Qualquer escritor deve ter em mente as características do gênero que está escrevendo e tornar a história intimamente ligada às suas particularidades. Com alguns momentos atenuantes, grande parte de uma história de Terror deve manter um clima tenso, opressor e desconfortável ― e como essas sensações são estimuladas dependem ainda de qual subgênero se está escrevendo: sobrenatural, com entidades demoníacas, fantasmas e lugares mal-assombrados; horror cósmico, com terríveis seres colossais de outras dimensões, infinitamente mais poderosas que os ignóbeis humanos; horror folclórico (folk horror) com seitas sinistras, deuses antigos e elementos ligados a natureza; gore, com componentes que causam repugnância e nojo; ou slasher, onde pessoas vão sendo progressivamente mortas por um ou mais assassinos.

Nada melhor que um trauma para não te fazer esquecer


E aqui finalizamos por onde começamos: reafirmando a competência da contação de histórias em transmitir mensagens. É no despertar de sentimentos, que a experiência se torna “à flor da pele”. Um escritor que sutilmente deseja levantar algum debate, constrói sua história com cenas, diálogos e atitudes de personagens que desembocarão em consequências, experiências imaginadas e sentidas por cada leitor que gerarão empatia. Ao impregnar a narrativa com um ponto de vista, o escritor tem a ferramenta para entalhar ideias nas mentes. Não à toa, na História da humanidade, estruturas narrativas são usadas até mesmo para doutrinação ― desde o nazismo, que utilizou o cinema para disseminar a propaganda por meio de narrativas atraentes para manipular seus adeptos, até hoje em dia, quando, por meio de instrumentos como fake news, pessoas mais susceptíveis à alguma ideologia extrema são conduzidas a acolhê-la cegamente, direcionando-as ao fanatismo.

Como tudo no mundo, a contação de história é uma ferramenta que pode ser usada de diversas formas e para todo tipo de finalidade, e engana-se quem acredita que os contos têm menos poder, por possuírem um curto espaço para a transmissão de informações. Em verdade, é até mais sensato dizer que seu formato condensado se adapta melhor a esta realidade acelerada que vivemos, onde pessoas se aborrecem e trocam de atividades num piscar de olhos que se distraem frente a um parágrafo mais longo e descritivo. É na pequena quantidade de caracteres que vêm a promessa ao leitor que ele não despenderá muito tempo na leitura, mas lembre-se: são nas sensações provocadas, que ele nem vai perceber que o tempo passou.

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