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Foto e Edição: Ise Albuquerque |
O Autor
Marcelo Coelho é jornalista e escritor, atualmente colabora com textos sutis sobre a vida cotidiana, conflitos e encantos em sua coluna no jornal Folha de São Paulo.
Cheiro de Nostalgia
Comigo é inevitável, fecho os olhos e acesso a memória do meu pai, seu sorriso, sua voz risonha, presença forte com cheiro almiscarado. E o cheirinho dos bolinhos de chuva que ele fazia também fazem parte da minha memória saudosista.

Assim é a leitura de Noturno, pura recordação, cada frase é composta de descrições ricas em detalhes. A leitura desvenda-se cruel ainda nas primeiras páginas, respeitando fielmente o título que estampa a capa do livro. São situações comuns do nosso cotidiano contadas com toda a veracidade ofuscada pelos bons costumes, como o parágrafo a seguir;
"E por isso a luz não tem a mesma cor de todos os dias e se vestiu para ficar bonita, como o esforço da menina feia que põe batom, sabendo inútil esse cuidado mas a seu modo presta uma homenagem às celebrações do instante;(...)"
São impressões muito particulares perante a ótica de diversas personalidades, como a de um viajante por exemplo.
"Mas há outras horas, outros instantes que se produzem antes disso, sob o mesmo sol que volta e sob as coisas que variam pela terra e pelo céu. Céu das manhãs de Veneza, então, que já festejam os gritos das gaivotas todo dia antes que eu volte a ver o mar: porque era o mar e não laguna a margem azul de água salgada em que batiam, quase entregues ao horizonte e não as vielas tortuosas de esgoto, os navios de cruzeiro ancorados lá onde o Grande Canal se alarga,(...)"
Ou a descrição do quarto de uma empregada doméstica sonhadora e dedicada.
"O cheiro do quarto prolongava o do tanque de lavar roupa mas era mais áspero, mais seco, de palha; chão sem tapete, tábua de passar."
"Também proprietária de uma vitrola de madeira clara, não funcionando direito, do tipo que forma sozinho um móvel, antes de existir televisão esses conjuntos eram peça decorativa em casas de classe média, sobre os quais se depunham compoteiras de vidro grosso, saladeiras ou cinzeiros de Murano rodeados de toalhinhas de renda branca deformada ou mesmo gôndolas douradas e negras, lembrança de Veneza navegando quieta nas ondas da Rádio Nacional."
"(...) As esperanças se dissolveram assim na boca, desembrulhadas uma a uma como os dropes Dulcora e os dias sucessivos na doçura; na fruição desesperada e insistem de uma mulher que finalmente disse muito bem, não tem importância, sobrou a caixa que hoje guarda coisas de rococó, seus caprichos elaborados de decoração dourada e cor-de-rosa (...)"
A leitura se faz doce e cruel. Cenários e situações pertencentes a alguém, descritas com todo o detalhe visual e afetivo que se expressa cativante.
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