Assistir um longa com a direção do talentosíssimo cineasta e produtor Darren Aronofsky não é uma tarefa fácil. Escrever muito menos. Não que seja algo desagradável, longe disso. E sim pelo surrealismo e as vezes até a objetividade estrutural, o que torna muito de suas obras até um pouco complexas, quem viu "Black Swan" (2010)?! Enfim, não é só de complexidade que se vive Darren Aronofsky. Entre as diversas produções Aronofsky nos apresentou a série documental produzida para a National Geographic "One Strange Rock" (2018) que por sinal não foge à regra quando o assunto são detalhe, a direção mantém a riqueza minuciosa e sensorial de um simples respirar por exemplo. 


Manipulação Midiática


Ellen Burstyn 
Depois de anos de muita relutância da minha parte, decidi assistir ao longa estranhíssimo de Darren Aronofski. Devido ao contexto extremamento carregado, precisei me preparar psicologicamente, então não resisti ao som de Lux Aeterna apresentada pelo Kronos Quartet orquestrada pelo inglês Clint Mansell e dei o play no cult.

Desde o momento em que acordamos recebemos inúmeras informações em suas mais variadas origens e relevâncias. A partir de onde isso exatamente acontece? Através do seu celular! A aba "Discovery" do Google  por exemplo, democraticamente te dá a opção de marcar como "útil" ou "inútil" e assim moldar o menu de news.

Legal Claíse, mas o que o "Discovery" tem a ver com isso?! No caso de Sara (Ellen Burstyn), tudo o que ela tem é a televisão, fonte de companhia e informação, já que seu único filho Harry (Jared Leto) vive distante, confabulando com a namorada Marion (Jennifer Connelly) e o melhor amigo Jovem Tyrone (Marlon Wayans).

E no auge da solidão, a telespectadora assídua se vê motivada através de um programa favorito, onde todos os participantes se mostram absolutamente felizes e satisfeitos com suas vidas, o que soa utópico, não é mesmo?! Sara até se sujeita participar do programa através de uma inscrição, e depois de um telefonema, Sara finalmente recebe o convite para comparecer no estúdio. Esse é o ponto crucial do personagem, o declínio de Sara Goldfarb.



Requiem for a Dream gira em torno de quatro perspectivas, quatro dependências e obsessões. A solitária Sara Goldfarb (Ellen Burstyn) que após o convite para participar de um programa televisivo começa uma dieta perturbadora para caber em um vestido  vermelho antigo. Pode parecer simplificado demais, mas talvez o que Sara esteja buscando seja uma oportunidade de reviver o passado e o vestido antigo é a representação empoeirada daquilo que passou.

                       Sonhos Despedaçados

Marlon Wayans E Jared Leto

Seu filho HarryTyrone e Marion, viciados em heroína montam um esquema de narcotráfico, com a ambição de realizar seus sonhos. Todos os personagens centrais têm seus objetivos e escolhas para atingi-los, sejam eles ilícitos e doentios, as escolhas já foram feitas. Essa é a raiz do filme. O longa tem outras abordagens carregadas de emoções e valores familiares e sociais, quis enfatizar o reflexo da manipulação midiática que Sara sofre, já que é um tema bastante oportuno para hoje em dia. E a atuação brilhante de Ellen Burstyn é realmente memorável.

Todo caminho é árduo, não adianta se iludir. É o que acontece com Sara, Harry, Tyrone e Marion, o preço que pagam pela ilusão é cara demais, a fatura dos nossos atos e escolhas sempre vêm a porta. O grande drama do longa do diretor são os meios que escolhemos para realizar nossos sonhos. Com ou sem ilusão.





O jovem desatento foi arremessado para fora do carro, pudera, André não usava o cinto de segurança. Bateu a cabeça nas pedras e sangrou até a morte. Carmem ficou presa entre as ferragens, mas era os estilhaços de vidro cravados no coração que estavam roubando sua vida. A pobre moça perdia os sentidos. Não conseguia dizer absolutamente nada e para o seu desespero, não conseguia se mover, somente as lágrimas moviam-se pelo corpo ensanguentado. Carmem fechou os olhos, pensava na família, nos amigos, nas pessoas que mais amava. Em prantos, recordava dos carinhos de sua mãe, da benção que pediu para a avó antes de sair.

- Não precisava ser assim, tão dramático! Enfatizou Hatsuo se aproximando da moça. Com as mãos nos bolsos e um cigarro no canto da boca, observando o céu estupidamente estrelado com um certo sorriso de contemplação. 

- A noite está tão graciosa, não vejo nenhuma nuvem agourenta no céu, consegue ver? Ohhh, mil perdões, creio que não possa ver, está prestes a se afogar no próprio sangue. Eu lamento muito! Quanta deselegância da minha parte!
- O céu já foi mais azul, estávamos mais próximos do cosmos, você sabia? Mas a humanidade evoluiu na ganância da própria vaidade, por isso não prezo nenhum carisma pela vossa espécie. Agora, chega de pronunciamentos baratos sobre a vida, a natureza humana, no fim, tudo isso não vale grande coisa, acredite.

Hatsuo apanhou o corpo da moça como um pedaço de pano ensanguentado, ela emanava os últimos suspiros de vida. O jovem vestido de preto selou seus lábios finos e cheirando a cigarro, encerrou a agonia de Carmem, dando-lhe uma leve mordida em seu pescoço quase desfalecido. Houve ali o último sopro de vida divina, era a morte da menina e junto às folhas e cascalhos da rua estreita e pouco iluminada, escurecia para sempre o reluzir daquele olhar manso. Morte e nascimento, luz e trevas. Foi ali na rua sem nome o despertar da criatura faminta e impaciente, era Carmem vestida de vermelho, renascia para sua nova vida, agora geniosa e imortal.

Hatsuo acompanhava a lentidão das pálpebras de Carmem, a agonia empalidecida e finalmente o grande despertar.  - Eu te saúdo menina, será um prazer te apresentar as maravilhas da noite. Ela olhava indecisa para o próprio sangue, observava cada detalhe do local onde estava.

- O que houve aqui?
- Carmem, você sofreu um terrível acidente, seu namorado não resistiu aos ferimentos e infelizmente faleceu. Eu sinto muito!
- André está morto? Por um momento, frações de segundos, para ser exata, uma lágrima ensaiava cair, mas não desabou. Carmem sentiu profundamente a morte de André, mas sua austeridade não permitia que chorasse por ele. Subitamente levantou-se, ajeitou os cabelos e deu o primeiro passo longe de Hatsuo.

- Para onde pensa que vai?
- Como assim? Para onde? Para minha casa, que pergunta estúpida.
- Moça tola, vai para sua casa?! Vestida assim, toda arrebentada?! Posso imaginar a cena o quão hilária seria – “Olá mamãe, não se preocupe, estou bem, sofri um rápido incidente. André está morto, mas eu estou bem, o que preparou para o jantar?”

E gargalhou até soluçar.


- Tudo pra você não passa de uma piada! O que leva a sério?
- A sério? Humm, tenho que pensar um pouco, posso responder uma outra hora? Precisa aprender, menina tola, acha mesmo que deve levar tudo a sério? Não enxerga a sua volta, as pessoas, o sistema político, a economia nacional, o Mundo. Também não precisa responder agora, não esquenta a cabeça com isso, temos muito tempo para pensar. Mais gargalhadas infindas.

- Já não suporto mais ouvir você rir. Esquivou-se, dando as costas para Hatsuo.
- Ainda é cedo, não completamos nem uma hora juntos. Precisa ser mais cautelosa com as palavras. Dessa maneira vou me zangar e a senhorita irá se arrepender e lamentar minha ausência.
- Está me ameaçando?
- Carmem, não irá questionar quando realmente você for ameaçada pela minha nobre pessoa. Entenda, sou seu amigo.
- Agradeço sua amizade, mas dispenso-a. Tenho que ir para casa, buscar ajuda, não sei o que fazer.
Hatsuo virou-se e partiu sem dizer mais nada. Carmem olhava para o jovem vestido de preto distanciando e gritou: - Não vai me ajudar? Hatsuo sem se virar gritou de volta cautelosamente: - Vai saber o que fazer!

Continua...

Parecia uma fotografia de Robert Doisneau, as frondosas árvores da Avenida Afonso Pena, suntuosamente iluminadas até a altura do Parque das Nações da amada Campo Grande. A luz púrpura pintava as ruas como um filtro dourado, pintava as pessoas, os restaurantes, praças. Na 14 de Julho, na altura da Feira Central, o cheiro dos saborosos sobás e pastéis fresquinhos desafiavam a fome dos motoristas e pedestres, e o fluxo insano de carros e buzinadas confundiam-se com as vozes afinadas e refrãos boêmios das casas de dança da rua 14 de Julho.

O sábado à noite tem seu charme particular, depois das oito horas, todos os casais, apaixonados ou não, povoavam as calçadas dos bares e as largas ruas vão ganhando o aroma afrodisíaco dos caldos, hambúrgueres e outras comilanças oportunas do sábado à noite. E entre os casais apaixonados ou não, estava Carmem, levemente maquiada, folheando o menu da sobaria tipicamente oriental, enquanto André, seu namorado verificava as notificações infindáveis do seu WhatsApp. Ela decidida, já havia escolhido o que iria pedir e levantou-se.
- Vou ao banheiro, já volto! Pegou a bolsa e saiu.

Ao lavar as mãos, incomodou-se com o cheiro de cigarro que saia de uma das portas, havia uma nuvem de fumaça cobrindo o banheiro. A moça continuou lavando as mãos, agora um tanto nervosa e inquieta.

- Não gosta do cheiro de cigarro? Perguntou um homem escancarando a porta com a ponta do pé. Ela completamente assustada e muito furiosa, pegou a bolsa lançando em direção ao homem.
- O senhor deveria se envergonhar, safado! Vá fumar no banheiro da sua mãe, imbecil! E dá-lhe bolsadas e pontapés.

A sobaria estava lotada, um verdadeiro formigueiro, o entra e sai das garçonetes, completavam as entradas do estabelecimento, mas nenhuma outra mulher precisou usar o bendito banheiro naquele momento. O homem gargalhava esquivando-se dos arremessos violentos e tapas da jovem. - Acalme-se mulher, por favor! Ofegante, ela sentou no chão. O homem estendeu a mão, ofereceu ajuda. Ela notou a beleza nipônica do jovem solicito vestido de preto, "Até que ele é bonitinho", pensou rapidamente, mas a fúria tomou conta novamente de seus pensamentos. Carmem bufava.


-Sou Hatsuo, peço perdão por assustá-la. Estou mor-tal-men-te arrependido por ser o motivo de sua agonia. Ela estarrecida, olhava fixamente para o rapaz falante. Encantada por aqueles olhos miúdos, e todo o ambiente perdia o seu som, uma espécie de quietude se aproximava como a paz serena de um passeio agradável em campos floridos, sem o farfalhar dos pássaros e dos pequenos insetos. Não pensava em nada, inclinou a cabeça, ­sutilmente sorrindo, voltou a realidade do banheiro vazio com a voz alta do rapaz vestido de preto, agora gritando repetidamente, - “Moça, moça? Carmem ficou de pé, arrumou os cabelos e voltou para a mesa buscando agir normalmente, o que era praticamente impossível. Ela pretendia compartilhar o incidente com André, chegou a decidir falar antes de sentar, mas mudou de ideia ao notar que a atenção do rapaz pertencia somente ao importuno do celular. Mais uma vez.

Após o silencioso jantar, o casal resolveu dar uma volta pela região central em busca de alguma sorveteria ou qualquer outro canto que tivesse algo para adoçar o resto da noite. No sinal da Rui Barbosa com a Afonso Pena, a moça viu Hatsuo encostado na parede de uma farmácia, o rapaz vestido de preto fumava seu cigarro e observava os carros. – Deve ser garoto de prog..., chegou a sussurrar, mas foi interrompida por André.

- Carmem? falando com você!
- Desculpe, mas sobre o que você estava falando mesmo?
-  É brincadeira, você não está me dando um mínimo de atenção sequer! O que está acontecendo?
- Atenção? Olha só quem fala, o rei da atenção! Você não larga o celular nem para ir ao banheiro. Após a afirmativa de Carmem, uma atmosfera silenciosa e inquisidora tomava conta da fatídica viagem. Voltaram para casa introspectivos, ela decidiu admirar a paisagem já conhecida afim de evitar mais desgostos com André. O silêncio reinou até a entrada do bairro Santa Luzia onde a moça morava com os pais. André, a fim de deixar a namorada o mais rápido possível escolheu um atalho. Pisou no acelerador afim de irritar a menina e em uma curva, perdeu o controle, no meio da rua estreita, deparou-se com um homem parado, era Hatsuo impedindo a passagem, mas a figura havia desaparecido em um piscar de olhos. André não teve tempo de frear, capotou o carro três vezes antes de colidir contra um muro.

Continua...

''Agosto é mês do cachorro louco", já dizia o vô Vicente. Espelho se quebrou, sete anos de azar, maltratou um animal, o Saci vem castigar. E foi assim que em uma tarde seca de agosto, sentado na sua poltrona verde, tomando café quentinho, vô Vicente nos chamou para sentar e sossegar o espírito porque já estava ficando tarde demais para sassaricar.

- Vou contar uma estória, assim vocês ficam quietinhas até a hora do jantar. Essa estória é do Juca Peste, um menino muito levado que viu o Saci de perto. Escutem com muita atenção, porque o Juca Peste morava no sítio e todos do campo conhecem a estória dele. 

Seu Tonho era agricultor da região de Ladário, sempre amedrontava os filhos contando as peraltices do Saci. Jonas, o filho mais velho não  importava muito com os causos contados pelo pai, mas no fundo não se metia a besta por aí de noite, só por precaução. Era Juca, o filho caçula que escutava com muita atenção as palavras do pai e se julgava pronto para enfrentar qualquer assombração. Rosavânia, mãe dos  meninos cuidava o relógio todo fim de tarde, primeiro para ajeitar a mesa do jantar para receber Tonho e Jonas e também porque depois das seis horas não era seguro ficar perambulando, ela acreditava que quando o sol fosse embora todas as almas que não descansaram em paz vagavam sem rumo pelas trevas. Naquele instante Tonho voltava para casa com as ferramentas de trabalho e de longe perguntou:

- Rosa, cadê Juca?
- Ah preto, deve estar vindo. Jonas o deixou lá perto do açude com os meninos.

- Pai, Juca não é besta de ficar enrolando por aqueles lados! Completou Jonas, se preparando para tomar banho. Tonho esperou mais alguns minutos e nada de Juca voltar, impaciente calçou as botas para andar no mato e saiu bufando. Tonho embrenhou-se no matagal e bem longe ouviu alguns assovios tristes, mas continuou a caminhada atrás do pequeno. Então, parou de caminhar e atento olhou para todos os lados que nem bicho arisco. De repente surgiu do meio dos arbustos Juca gritando, apavorado, o menino viu o pai e se jogou nos seus braços tremendo de medo.

- Pai, o senhor ouviu? 
- Onde você estava guri? Eu e sua mãe estávamos preocupados por demais.
- Estava jogando bola com os filhos do Zé e do Beto pra baixo do açude. Depois ouvimos uns assovios se aproximando. Foi quando o Fernandin falou que podia ser saci, então corremos desembestados.

Os dois voltavam para casa e andavam depressa porque aqueles assovios não cessavam e junto daquele som perturbador uma ventania levantava a terra vermelha do chão. As árvores sacudiram os galhos sem parar, cobrindo o chão de folhas e frutos, logo formou-se uma parede de poeira dificultando a visão, então uma gargalhada estridente passou pelos dois.

- Saci, saci, é saci! Gritava Tonho protegendo Juca com os braços. Mas a ventania tinha se acalmado, depois do susto. Tonho catou Juca do chão e tratou de correr com o guri no colo. Rosavânia estava apreensiva no portão esperando os dois.

- Jonas já estava indo atrás de vocês. Esbravejou com as mãos na cintura. 
- Já para dentro os dois e Juca trata logo de tomar banho e sossegar. Depois de jantar, o menino não conseguira nem dormir e sussurrava.

- Será que foi mesmo saci, Jonas você precisava ter visto, um redemoinho cobriu eu e o pai no meio das mangueiras.
- Você que não é mané de descobrir. Vai dormir assombração. Juca passou a madrugada encabulado, pensando, pensando... Assim que amanheceu Juca nem esperou o galo cantar, sumiu antes de todos acordarem.

Tonho e Jonas montaram seus cavalos e foram procurar o menino sumido. Foram de casa em casa até chegarem na casa de Beto. 

- Tonho uma hora dessas?! Recebeu Beto sorrindo porque já era hora de almoçar.
- Pois é rapaz, Juca sumiu!
- Não esquenta, ele deve está brincando por aí.
-  O pequeno tá sumido desde cedo...
- Seu Tonho está procurando Juca?
- Estou sim Bernardo, você sabe de alguma coisa?
- Ontem quando corremos assustados, Juca disse que voltaria lá no campo pra esperar a assombração aparecer...

Já era quase meio dia quando os três saíram atrás de Juca.
Os cavalos estavam inquietos, os pássaros pararam de cantar, Beto percebendo o silêncio avisou:
- Está tudo muito tranquilo por aqui, vamos ficar atentos, olho aceso!! Tonho cavalgava na frente do lado de Beto e Jonas atrás. O rapaz segurava seu chapéu, pois o vento começava a assoprar de longe. Jonas prestou atenção no silêncio que se estabeleceu após a rajada de vento, depois não via mais seu pai nem Beto.

- Pai. Chamou o jovem. Ninguém respondeu.
- Jonas! Uma voz doce o chamou. O rapaz ficara encabulado, de quem era a voz?! Não podia ser nenhuma moça que ele conhecia, pois o que ela estaria fazendo sozinha? Se ela estivesse em perigo, seu chamado não seria tão sereno.
- Jonas, venha me ver... A voz se aproximava a cada silêncio que fazia. O rapaz arregalou os olhos, deu meia volta e disse:
- Vou não! E cavalgou depressa pelo caminho que veio.
- Ô rapaz onde você estava? Perguntou Tonho brava que só.
- Depois eu conto, vamos caçar Juca.
- Eu estava falando pro seu pai, Juca deve estar escondido, esperando ver assombração.

A tarde já se despedia, deixando o escuro se espalhar pelos campos. Os três pararam perto do açude onde Juca costumava brincar. Tonho cabisbaixo, não deixava de pensar no pequeno, Jonas ajudava Beto a preparar uma fogueira, mas o vento apagava as chamas que se formavam e não tinha jeito, a luta agora era contra o vento. Uma parede de terra cobriu os três homens que protegiam os olhos, o vento que assoprava trazia um redemoinho de folhas e galhos e junto uma risada triunfante, era o pestinha do cerrado se divertindo com o pavor dos homens, rasgando os galhos das mangueiras, levantando a terra branca até o céu.

- Sai pra lá, sai pra lá! Gritava Tonho de olhos fechados. E o Saci surgiu entre assovios e poeira.

- Suas crianças são danadas e Saci gosta de crianças travessas! O Diabinho rodava sem parar no meio da ventania, rindo e se divertindo muito com o pavor dos três homens.

- Ô peste! Bufava Beto.
- Saci é pior que isso, respondeu Jonas.
- Não, ele não é tão ruim assim Jonas, eu tô falando daqueles guris. Fizeram coisa errada então ele veio castigar.
- O Homem sabe o que diz, sou justo, protejo a natureza contra todo o mal, peguei sua criança usando um elástico para matar os pássaros do cerrado, tentou acertar uma linda rolinha que se banhava nas águas do açude, não permiti tamanho disparate contra a natureza, mas vi que ele aprendeu a lição.

- Cadê Juca peste?! Gritava Tonho.

A ventania cessou e os três abriram os olhos, o redemoinho subira ao céu se espalhando entre as estrelas. Os três admiravam aquele fenômeno muito assustados, foi ai que Juca surgiu chorando arrependido, pois aprendeu que não deve maltratar os bichos da natureza.

Então Juca peste abraçou o pai, que logo avisou:
- Agora promete que respeitará a natureza, se não já sabe, o Saci vem te buscar! Os três sorriram contentes, menos Juca peste que soluçava arrependido.



O trânsito estava normal como de costume para um sábado de verão. Sem vento, só calor, sem nuvens, no céu só estrelas estupidamente brilhantes. Cheguei no Bairro Coophasul por volta das 17 horas nem muito cedo, nem muito tarde. Abri a velha perua azul celeste e retirei o meu kit feira. Montei a barraquinha modesta na rua Sargento Hércules, feira noturna, sábado a noite, muitos moradores acima de sessenta anos frequentavam a feirinha. Terminava de ajeitar os livros e vinis, quando um senhor se aproximou com uma sacola do Supermercado Camila da Rede Econômica.

- Noite, o senhor por um acaso tem ai livros de relatos de guerra, combatentes históricos, essas coisas.

- Como o senhor se chama?

- Me chamo Joaquim, Joaquim Serra de Oliveira.

- Pois bem seu Joaquim Serra de Oliveira, eu vou ter aqui "Os Meninos da Guerra das Maldivas" do Jornalista Daniel Kon. Hoje colunista do Clarín.

- Já li sobre as maldivas, conheço os artigos desse argentino saudosista, vou levar!

- Que beleza! E a primeira venda da noite vai para o senhor com a sacola de supermercado, Joaquim Serra de Oliveira!

- Muito obrigado filho, agora tenho que ir, a patroa está me esperando. Até mais ver!

Depois da venda para o senhorzinho continuei com minha arrumação da banca, peguei uma edição de contos de Machado de Assis, o povo tinha começado a aparecer, precisava agir com meu marketing elaborado. Fiquei na frente da banca para anunciar alguns títulos para os transeuntes.

- Romances e Dramas, só cinco reais, só cinco reais. Vai um romance ai moça? - Não obrigada! - Um suspense? - Não moço, obrigada, não gosto de ler. "Ela não gosta de ler", repeti apenas para o meu eu interior, a moça certamente possuía algum tipo de transtorno psicológico, já que ela lê tudo em sua volta, o que parecia não saber disso. Essa afirmativa é muito perspicaz, ela lê as mensagens no seu celular, lê as promoções das lojas, lê o extrato do seu saldo bancário, tudo é leitura, camarada. Mas já passou, a moça já tinha ido embora enquanto eu dialogava comigo e sorria feito um maluco nessa noite de sábado na rua Sargento Hércules do bairro Coophasul.

Já estava escuro quando apareceu o casal simpático da noite, era Pablo e Claíse. Os dois sempre passavam por mim todo santo sábado. Ela vestia uma camisetinha cor-de-rosa com estampa de gatinhos e também usava um laço vermelho na cabeça. Pablo usava a mesma camiseta preta com a cara do Raul Seixas, todo sábado era a mesma camiseta. Gostava de ver os dois juntos. Ela ficava na minha banca dedilhando todas as fileiras de livros, comentava cada um que escolhia, eu adorava conversar com eles. Mas o momento de escolher um livro era muito particular, então eu não abria o bico.

- O que está procurando meu amor? Perguntou o jovem vestido com a camiseta do Raulzito.

- Não sei. Ele sorri e não diz nada. Eu dou um sorriso pra ele também e sugiro algo.

- Tenho essa coleção que chegou essa semana. Vem de uma coleção conhecida como "Mistérios do Desconhecido", acho que você pode gostar. Foi certeiro. Ela adorou e levou dois volumes. Trocou uma ideia comigo sobre fatos sobrenaturais e até me indicou algumas leituras. Falou sobre filmes de horror e cantigas infantis.

- Vamos! Se deixar ela falar, vai passar a noite toda... Sugeriu Pablo com toda a simpatia e educação de um verdadeiro cavalheiro. Eles me agradeceram e foram embora. Em seguida passou por mim um outro casal. Não conhecia muito bem, já tinha visto esses dois por aqui. Ele tinha um jeito reservado, usava um boné agrícola, calça jeans e botinas escuras. Ela usava um vestido azul. Passaram por mim no auge da minha atuação artística, quando lia o poema "A Cantiga do Sertanejo" de Álvares de Azevedo.

"Donzela! Se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
que tenho no coração!
E se ouviras o desejo
Do amoroso sertanejo
Que descora de paixão!"

- Que lindo! Você que fez? Perguntou a moça de vestido azul. Antes que eu respondesse qualquer sílaba;

- Foi...

Um punho cerrado aproximou-se como um cometa, bem na minha cara. Entendi o recado sem o manifesto de uma única palavra, claro, podia ser maluco, mas não era idiota. Sem poemas ultra românticos para essa noite de sábado na rua Sargento Hércules do bairro Coophasul. Da próxima vez vou recitar algo do Ferreira Gullar ou Olavo Bilac, depende.